21.6.06
Dos relógios
Eu quase não uso relógio. Acho um objeto belo, sem dúvida, mas desde pequeno nunca entendi porque raios as pessoas usavam aquela pulseira com uma caixinha acoplada. Sempre ouvia, impacientemente, que era para saber o horário. E daí?
- Mas o horário de quê??
- O horário das coisas! As pessoas têm coisas para fazer...
- Uhm...
Nada disso nunca me convenceu. Até hoje não me convence. Belíssimos os relógios, os quais giram nos seus ponteiros as horas de um universo sem hora. Todo dia, ao amanhecer, lá estão eles, milhares, um exército inteiro. Nas casas; paredes, eletrodomésticos, telefones, nas mesas, cabeceiras, criado-mudos, nas gavetas. Prontos para irem a qualquer lugar, firmes, seguros do horário - assim esperam seus donos atrasados quando os põem no pulso. Esperam, porque deles dependem. O homem talvez tencione ser assim.
Antes era o tempo do sol, dos galos, dos climas e estações. Hoje é o tempo dos relógios: precisos, seguros, rígidos, disciplinados, de alguma forma empedernidos. Não há chuva ou seca que detenha o homem e sua tecnologia, não há clima ou estação(até porque esses começam a se tornar cada vez mais difusas e inconstantes). Os galos viraram reminescências obsoletas, renitentes.
A música é diferente na marcação do tempo. suas batidas são leves, quase imperceptíveis sob a melodia que embalam. Na percussão, onde a batida sobressai, por vezes desrespeita-se a marcação cadenciada que os relógios obedecem militarmente, religiosamente, cortando com marteladas o fluir do tempo inventado, abalando a maciez do que desliza, incomodando o silêncio supremo das madrugadas, sendo a pedra no curso do rio.
Os homens projetaram os relógios. Hoje os relógios se projetam sobre os homens.
Deles não quero depender nunca. E que me desculpem os atrasos.
O Relógio
1.
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.
Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade
que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.
2.
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;
desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;
têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:
dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários
para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,
de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.
3.
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;
ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
a máquina independente
de operação operária.
De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:
quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graçar a um fluido que a passa;
que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.
E porque tampouco cabe,
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.
4.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;
outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.
Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;
se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,
incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.
(João Cabral de Melo Neto)
De acordo com o já dito anteriormente, esse poema me lembra outro do mesmo autor que eu acho fantástico pela beleza da imagem que cria.
Tecendo a Manhã
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(João Cabral de Melo Neto)
Esperança de que o homem ao trocar o colorido, vivo e diverso canto dos pássaros afinados, pelo grito monótono e inflexível do pássaro rouco, não troque junto suas cores e se torne um homem monocromático. Um sim para os artistas do cotidiano, todos os nãos para os operários do dia-a-dia. Boa falta de tempo para vocês.
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3 comentários:
q maneiro, esse é um dos quadros q mais gosto... :P
adorei vc falar de relogio e tempo!!
cara, mas oq é o tempo?? qual/quais a definição de tempo pra vc? gostei do "Boa falta de tempo"
muito maneiro seu blog!!
bjao
Puta merda! Muito foda esse post.
Facul até nos tem permitido escapar um pouco dessa projeção! hahaha XD
Eu estou lendo e relendo isso aqui. Amei mesmo.
Quebremos os passarinhos roucos e sejamos artistas! /o/~
Mas a maioria não quebra. E nós somos tidos como vagabundos.
Injusto.
Eu esqueci de assinar de novo! u.u
E...
Droga!
Falta-me tempo! ;_;
Pq ignoraram Einstein quando ele disse que era relativo?
Que merda! u.u
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