23.7.06

No caminho, em busca do caminho

Rompi o prazo, como meu espírito indisciplinado sempre faz. Me desculpem, mas também se for para atualizar de qualquer jeito, nem eu, nem esses transeuntes da rede estarão satisfeitos.



Desenho: Edward Hooper - Night Shadow.




No caminho, em busca do caminho

(Nelson Galot)


Meu lugar é nos filmes, a literatura é o universo e na sua menor partícula, a palavra, se descobre meu sentimento. É na palavra, ou na inexistência delas, que vão, parcamente, preenchendo minhas razões, como um alvo que de tantos acertos descentralizados, tem seu centro destacado. Talvez aí esteja o exprimir almejado: no espaço em branco, no não-dito, no suposto vazio, na transparência – enxerga quem alcança. Dessa miopia mais de meio-mundo sofre.

A música é a trilha, por isso as notas musicais, só, puras, sem número, sem desenho, marca ou qualquer registro são tão bem-quistas. Dão forma sem definir, se moldam dentro de cada ouvido, cérebro, se encaixam no compasso, na pulsação, ora em andamento acelerado, ora lento. Essa música todos ouvem, muito baixa e longínqua, mais ouvem. Nas fotos da infância, nas mortes, nas separações ela se faz escutar.

E de tanto falar o mundo já cospe nos olhos, de tanta carga, tombo no chão, encharcado e confuso. Diz-se muito pouco e não acho a peneira correta e definitiva. Não me venham traduzir o ocaso, por favor. É preciso escutar com os olhos, o nariz e o tato. O mundo carece de concisão. Nós, pessoas, padecemos de carinho e atiramos a súplica ou o mando; sujeitamos até como penalizados.

Está montado o salão, o baile vai começar: danço só, e pensam que sou louco. Contudo, a música embala, me envolve, me atravessa e não me resta dúvida: o engano é dos outros. No passar desengonçado, no meu ritmo, na minha trilha, no meu caminho, vou em busca do caminho. Me entender e compreender um pouco melhor o outro.
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1.7.06

Mais uma vez o tempo... e dessa vez o Rio também.

De antemão, aviso. Uma crônica ou pseudo-crônica: se é, ou não, vocês digam ali na parte de comentários. Repleta de meias verdades, afinal eu sou preciosista, odeio deturpar os discursos. Se eu mudo uma palavra, alerto que não é “sic”. Mas não foi só isso, entrou o contador de história(engraçado, nunca soube contar histórias, será que isso se aprende?), o escritor. Texto é texto, fato é fato. Cada meio desfruta de recursos diferentes para atingir as pessoas, para falar das mesmas coisas, então que cada um use o que pode. Afinal, não sou jornalista – ainda que meu texto seja tão fiel aos fatos quanto os que estampam os diários. Pelo menos aqui não tem sensacionalismo.


Sexta. Me dirigi a um salão de cabeleireiro, para reduzir meu corpo capilar que se avolumava, começando a desenhar um black-power. Então cortando pela primeira vez no citado recinto, o profissional, no intento de ser agradável, começou a puxar conversa. Falou do jogo Alemanha e Argentina que transcorria no salão repleto de televisores e distraía os profissionais na execução de suas funções. Eles viam mais o jogo do que cortavam, mas enfim, não me importa os ganhos do patrão. Dado momento o rapaz, simpático, contudo sério, me perguntou onde eu morava. Respondi e lhe devolvi a pergunta. Ele disse que havia morado na Glória, num passado recente, um apartamento amplo com uma bela vista para todo Aterro do Flamengo. A imagem do Aterro contemplado obliquamente por uma grande janela em um dia ensolarado reluziu na minha mente. Ele continuou dizendo que agora estava na Tijuca, em um apartamentinho de fundos – escuro e triste, pensei. Nesse momento ele focou no espelho e seus olhos deram uma leve suspirada – ele se lembrava do apartamento na Glória.

Olhei para o nada também, de forma a não ficar perdido na situação. A tesoura reduzia meu cabelo tirando curtos fragmentos de cada fio; tudo ocorria com agilidade, enquanto as idéias fluíam sem pressa. É o tempo da nostalgia. Nem devagar demais, nem corrido demais. Parece que relembrar outros tempos e lugares reclama uma pausa ao tempo presente. A verdade é que talvez devesse ser assim, pois não é, sabemos. Os fragmentos tomavam o pano, que estendido sobre o meu tronco, ficava monocromado, inúmeros os salpicados de pontos pretos (os brancos não eram muito visíveis).

Antes, porém, que eu preenchesse tantas linhas com meus pensamentos, voltemos ao suspiro no olhar do pobre profissional da estética. Ele lembrava do seu apartamento amplo e iluminado, saudava a grande janela que lhe oferecia aquela portentosa fotografia do Rio. Foi quando complementou com uma frase que me induziu a certeza de que ele era, nesta cidade, mais um emigrante:

Era lindo! Dava para ver todo Aterro... você olhava e se sentia morando no Rio de Janeiro... eu gostava muito de lá. Mas acabei me mudando, tô aqui... mass.. espero voltar para lá um dia... – o apartamento estaria guardado esperando pelo retorno dele? Teria sido vendido? Que fim teria tido? Morar no Rio de Janeiro era com certeza o sonho dele. Donde vinha não sei dizer, não perguntei, achei invasivo indagar e a conversa não correu para esse sentido. Seu pensamento corria meio solto, ele não tinha muita preocupação de articular frases, mas sim idéias. Falou das praias, do clima... Era o clima, o vento, o cheiro, o ar dessa cidade que ele exaltava. Não me intrometi na exteriorização, não quis atrapalhar, desviar, conduzir à minha visão.

Repassei o que ele havia falado e mirei admirado pelo espelho. Sim! Sentir-se morando no Rio de Janeiro, mas isso era tão óbvio! Será que eu fora o último a pensar nisso? Um apartamento sem janelas, pequeno, com pouca respiração, é igual em todo canto. Todavia, aquele panorama de cartão postal do Aterro era único, não há canto do mundo no qual se repita. Genial? Seria exagero dizer isso. Também não era uma idéia distante da maioria, nem complexa. Realmente creio que fui o último a perceber isso... ou a dar atenção de que isso é um ângulo do que significa “morar no Rio de Janeiro”. Essa é a visão de quem sonha virar morar aqui, ascender, ter uma vida boa, lograr na realização das ambições.

A Argentina fez um gol e a grita vinda de alguma proximidade foi alta. Alguns no salão se lamentaram e os cabeleireiros, após o replay, voltaram-se às cabeças de seus clientes. De pontinha em pontinha, meu cabelo foi ficando pelo chão e sobre o pano. Então o corte acabou para a felicidade da minha impaciência. Me despedi do cabeleireiro, paguei, naturalmente, e saí do salão. Mal cruzo o portal, a Alemanha empata o jogo e dessa vez os gritos se fizeram ouvir mais longe, ecoaram: coisa de brasileiro, rixa com argentinos... coisa de carioca e, porque não, coisa de migrante.